F. saiu de seu prédio de manhã.
O dia não estava tão ensolarado, mas ele usava seus óculos escuros. Ferramenta super importante para sua atividade, evitava que percebessem para onde estava olhando. Atividade, devo dizer? Era mais como um estilo de vida. Assim como os ornitólogos observam as aves, F. fazia de sua visão a ferramenta para decretar o que o universo exigia de alguém com seu discernimento, o julgamento. Pois o que está para ser visto, está para ser julgado.
Mas não pensem que era um trabalho fácil. Anos de experiência se acumulavam nas costas de F. Era mais que um hobbie, era uma responsabilidade! Quase um dever cívico, que ele cumpria com a maior presteza e dedicação. Era assim que tinha que ser.
E logo que terminou de respirar a primeira brisa de seu bairro arborizado, passou tirando-lhe um fino uma garota num patinete. Tomou um susto! Mas logo se recuperou e pôs-se em ação!
Camisa folgada de exercício, magra, calças de yoga, cabelo castanho num rabo de cavalo… um 6,8!
Se fizesse mais agachamentos todo dia poderia chegar a um 7,5.
Mas as mulheres de hoje em dia não são tão mais esforçadas. Uma simples dieta e algumas horas a mais na esteira fariam a diferença para a maioria.
Atravessou a rua e foi em direção à banca de jornal.
Comprou com satisfação um jornal esportivo, daqueles que tem sessão de palavras difíceis para auxiliar o público alvo, para poder dar um sorriso e constatar (já sabia, na verdade) que seu time estava indo bem no campeonato.
Na coluna de fofoca do jornal, constava uma foto de uma ex-mulher de um jogador, que havia se dado bem na divisão de bens do divórcio.
Essa é difícil, pensou. Tem um corpo escultural bem malhado, mas o rosto não é tão bonito assim. Não sei o que aquela cara viu nela, poderia ter conseguido algo bem melhor! Mas aquelas coxas… 8!
Satisfeito com seu status de expert, resolveu sacar seu celular para uma rápida conferida em suas redes sociais. E foi direto em sua ferramenta favorita. Abriu o app do Tinder. Em seu perfil, constava uma foto de seu poodle (mulheres adoram cachorros!) e outras tantas com havaianas, camisa do timão, e óculos espelhados. Mas o que importava não era seu perfil, era o cardápio!
Essa aqui, nem pensar!
Essa está usando um óculos muito grande, deve ser para esconder a feiura do rosto!
Ah, esta tatuagem no canto da bunda! shhhhh (sugou a saliva da boca e prendeu a respiração)
Não se deteve muito tempo nisso, no entanto. Sabia que estes apps eram uma enrolação. Mesmo pagando a conta premium, ninguém nunca lhe respondia. Valia mais pelo treino. A satisfação de dar down vote naquelas que não mereciam ser agraciadas com um like.
F. sentiu então a vontade de tomar uma breja. Não era bem meio-dia, e não tinha combinado de se reunir com ninguém, portanto foi sozinho até o boteco mais próximo. Sentou sozinho numa mesa e chamou o garçom.
“Meu filho, você tem leite de cabrito manco?”
“Não, senhor”
“Ah, que pena! Então me vê uma cerveja bem gelada mesmo!”
Foda-se que bebesse sozinho quase meio-dia. O dinheiro era dele, ninguém tinha nada com isto.
Ademais, naquele ponto passavam várias pessoas que estavam indo correr na orla da praia. Alvos perfeitos para a análise.
“É, essa ai vai precisar correr muito se quiser ter uma chance… haha”
“Já deve ter mais de 30 esta senhora. Putz, não sei nem porque está se esforçando ainda”
O álcool não atrapalhava seu raciocínio. Pelo contrário! Fazia mais fácil fazer os julgamentos. Era o combustível da sua genialidade. Ele se orgulhava de ser resistente ao álcool. Na verdade, seus amigos mal podiam distinguir se ele estava embriagado ou não, pois seu jeito era um tanto… rudimentar. Se comunicava na maior parte do tempo por chavões e grunhidos, misturados com algumas palavras do seu repertório menor que 500 vocábulos.
Trabalhava como segurança de uma boate onde a maior parte do clientes eram gringos. Sua fisionomia ajudava a manter a ordem, porque de certa forma assustava.
E mais, gozava da maior autoridade, pois o dono da boate queria manter certos padrões, e instruiu os funcionários a não deixarem entrar mulheres “fora do padrão” no estabelecimento. F. usava de todo seu conhecimento e anos de treinamento para discernir quem deveria ser barrado.
Era um prazer sádico informar para as reprovadas que o ambiente “estava cheio demais para comportar maior público”.
Mas, voltando ao presente, F. se sentiu um tanto cansado. A leitura do jornal tinha sido muito esforço. Ele decidiu encaminhar-se para casa.
Aproveitou o caminho de volta para julgar…
A gorda demais.
A baixa demais.
A dos peitos caídos.
A reta que nem uma tábua.
(Meu Deus, onde estão as de 9 pra cima neste bairro?!)
Passou pela portaria, onde o porteiro acenou e continuou olhando a mini TV ao lado dos monitores de segurança.
(Coitado, esse aí nunca vai pegar uma 8)
O elevador chegou.
Dentro dele, uma parede quase inteira revelava um enorme espelho.
F. se olhou…
E não julgou