1984 e a Polícia do Pensamento

Terminei ontem a releitura anual de 1984, do George Orwell. Sim, releio todo ano, é meu livro favorito de todos os tempos! Meu exemplar já passou por muita história, e já está todo gasto de tanto que eu o leio. Já também li em Inglês, versão eBook, audiobook, outras edições etc.

Mas porque tamanha paixão por este livro? Porque ele, apesar de ter sido escrito há mais de meio século, se relaciona perfeitamente com a opressão política que sofremos atualmente.

Mas vamos do começo.
George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, não era de direita.
Em fato, ele era super de esquerda! Como então este livro foi cair como queridinho de muita gente da direita?
Bem, temos que voltar um pouco no tempo…

Quando aconteceu a Revolução Russa, que inclusive foi retratada por Orwell em seu outro livro, A Revolução dos Bichos[1]Já vi gente dizendo que este livro não era um retrato da Revolução Russa, e sim uma alegoria contra o capitalismo. Não sei muito bem como rebater esta crítica, porque não é bem desonestidade … Continue reading, Lenin assumiu a liderança. Abaixo dele tinham algumas pessoas, dentre elas Stalin e Trótski. Só que o Trótski era um cara mais intelectual, e o Stalin era uma besta quadrada. Então acabou que o Trótski se prestou a fazer um trabalho mais teórico, e o Stalin ficou com a função mais “carregador de piano” de se comunicar com o pessoal mais abaixo. Só que quando Lenin morreu, Stalin estava por isto numa posição de maior poder, e clamou para si a liderança, começando então a perseguir todo mundo que tivesse condições de disputar o comando. Trótski era um dos principais.

Orwell apoiava o pessoal do Trótski, e era contra o grupo do Stalin.
Quando lutou como voluntário na Guerra Civil Espanhola, viu o absurdo que foi socialistas perseguindo socialistas. E foi com este sentimento de revolta que escreveu seus próximos livros. Ele não era contra a esquerda, sendo ele mesmo um socialista democrata, mas era contra o autoritarismo da URSS e de Stalin.

Diferente d’A Resolução do Bichos[2]https://pt.wikipedia.org/wiki/Animal_Farm, 1984 é mais contra o autoritarismo em geral, sendo também crítica do Nazismo, além do regime da URSS. Mas acontece que, depois de passada a Segunda Guerra, os EUA passaram a ver o regime soviético como a próxima grande ameaça. Foi então que entrou a guerra híbrida entre ambos, e 1984 foi vendido como peça de propaganda.

Portanto, Sr. Esquerdista, pode ler o livro sem medo, ele será do seu agrado!

Qual a relação com o mundo atual que citei?
É preciso tomar muito cuidado, porque dá vontade de relacioná-lo com coisas que nem passavam pela mente do autor na época. Por exemplo, o Versificador, que era uma máquina que produzia romances (como em livros mesmo). Na época era impensável que houvesse uma máquina que fosse escrever peças literárias, mas hoje em dia temos as inteligências artificiais, que podem fazer exatamente isto! É claro que George Orwell não era um profeta, e não previu a evolução da tecnologia. Então fazer associações deste tipo é fruto de puro entusiasmo.
Mas, na vertente política, sim, tem muita coisa que se encaixa.
Como no título do post, a Polícia do Pensamento.

No livro, a Política do Pensamento era o órgão responsável pelo controle ideológico dos membros do partido. Qualquer transgressão, no sentido ideológico, era severamente punida.
Se você, seja de esquerda ou direita, quando foi falar ou postar alguma coisa na sua rede social, parou por uns instantes e pensou “será que isto é politicamente incorreto?” Não ilegal, não imoral, mas se a Espiral do Silêncio iria te punir por estar em desacordo com status ideológico vigente… meu amigo, você está se reportando à Polícia do Pensamento.

E não basta querer estar de acordo com a Polícia do Pensamento, você tem que acreditar nas ideias absurdas que o estão circulando. E tem que estar atualizado quanto as mesmas. Porque se você era totalmente politicamente correto há 5 anos atrás, hoje em dia, com o mesmo discurso, você seria condenado!
Um exemplo disso é o uso da palavra “negro” para se referir à afrodescendentes, que hoje em dia foi substituído para a palavra “preto”. Dá até uma sensação estranha na hora de falar, porque se você se referisse à pessoa como “preta” antigamente, era uma ofensa terrível, comparada ao N-word dos americanos. Mas a situação se inverteu. Então, se uma pessoa totalmente ortodoxa de meia década atrás, caísse de paraquedas no presente, e fosse fazer um discurso, ela correria o risco de ser hostilizada!

Vejam, sou totalmente à favor de que as pessoas sejam chamadas daquilo que se sentem mais confortáveis. O problema está em, ao acordar, ter que ir pesquisar qual é o status quo da ideologia esquerdista vigente! Não tenho culpa se não sabia que adicionaram mais uma letra na sigla que antigamente era só LGBT! Não quero me sentir como um criminoso quando dá aquele frio na espinha na hora de me referir à  etnia de uma pessoa!

Voltando… Este arrepio que dá de estar ou não “falando o certo”, é puro controle mental. Mesmo as pessoas de esquerda vivem sob o terror da Polícia do Pensamento. Hoje em dia, é preciso muita coragem para, sendo de esquerda, ao encarrar a situação do país, falar timidamente “ah, acho que não vou votar no Lula na próxima eleição”. E, ao olhar a expressão do grupinho, se corrigir rapidamente, “vou cotar no Ciro… haha”

Porque o mecanismo de controle mental está, como o nome sugere, dentro da sua cabeça. O medo da punição faz com que você mesmo se censure. Vai além do que você considera certo ou errado, passa pela camada do terror da punição social que acarretará.

Quem estava em condição de comprar carne, agora está só conseguindo comprar ovo.
Quem só conseguia comprar ovo, agora está… bem, está na merda. Com deficiência de nutrientes.
Mas ai de você se ousar reclamar!
Não importa se você sabe que o rumo que as coisas estão tomando é muito errado.
Se você se manifestar, será excluído, hostilizado, silenciado…
Então é bom que seja bem ortodoxo, e concorde com tudo que O Partido (como se diz no livro) quer que você diga. Aliais, diga não… pense. Pois é exigido que você se force a pensar da forma que é “correto”.

References

References
1 Já vi gente dizendo que este livro não era um retrato da Revolução Russa, e sim uma alegoria contra o capitalismo. Não sei muito bem como rebater esta crítica, porque não é bem desonestidade intelectual, é burrice mesmo.
2 https://pt.wikipedia.org/wiki/Animal_Farm